Julgados mais recentes do TIT apontam para o ressurgimento da tese da responsabilidade objetiva
Para este artigo analisamos 18 acórdãos publicados no período de 19.09.2019 a 30.09.2019 e proferidos pela Câmara Superior do TIT-SP, dos quais metade o Tribunal deixou de conhecer os recursos especiais interpostos sob o fundamento de inexistência de decisões paradigmas e impossibilidade de reanálise de provas. Abaixo um resumo do que foi analisado pela Câmara Superior no período:
- 7 acórdãos em que os recursos especiais deixaram de ser conhecidos sob o fundamento de ausência de decisões paradigmas (AIIM 4104244-0; 4038279-5; 4114069-2; 4063259-3; 4039805-5; 4064300-1; 4037834-2);
- 2 acórdãos em que os recursos especiais não foram conhecidos sob a alegação de impossibilidade de reexame de provas (AIIM 4089339-0 e 4065940-9);
- 1 acórdão cujo recurso especial interposto não foi analisado em razão de do pagamento do débito (AIIM 4092792-1);
- 1 acórdão que se prestou para confirmar a necessidade de estorno de créditos de ICMS relacionados à aquisição de óleo diesel adquirido em operações de prestação de serviço rodoviário de carga iniciada em outra Unidade da Federação (AIIM 4031633-6)
- 3 acórdãos que anularam as decisões recorridas sob o fundamento de ausência de apreciação dos fundamentos de defesa trazidos pelas partes e carência de fundamentação das decisões proferidas (AIIM 4035659-0; 4108011-7 e 4040086-4)
- 1 acórdão em que se discutiu a possibilidade de apropriação de créditos de ICMS em decorrência da aquisição de sacolas e sacos plásticos disponibilizados gratuitamente para acondicionar os produtos comercializados (AIIM 4075489-3)
- 3 acórdãos que determinaram a conversão do julgamento em diligência para se determinar, dentre as diversas partes envolvidas nos processos na qualidade de responsáveis solidários, quais haviam sido os recursos especiais cujo processamento fora deferido (AIIM 4052402-4; 4046752-1 e 4046578-0)
Contudo, e inobstante sequer conhecido o recurso especial, a decisão proferida no AIIM 4049334-9 nos apresenta questão sensível e é sobre ela que passamos a tratar adiante de forma mais detalhada.
O retrocesso à responsabilidade objetiva do adquirente em operações consideradas inidôneas
A autuação selecionada para a análise neste artigo versa sobre a glosa de créditos de ICMS registrados quando da entrada de mercadorias recebidas de “fornecedor inidôneo” (cujos documentos por ele emitidos e que acobertaram as vendas foram declarados inidôneos).
Trata-se, sem questionamentos, de matéria cujo entendimento já há muito se encontra consolidado tanto no âmbito judicial, face ao julgamento do Recurso Especial nº 1.148.444/MG, analisado sob a sistemática dos recursos repetitivos, como na seara de competência deste próprio Tribunal de Impostos e Taxas, em consonância à sessão monotemática realizada sobre o tema ainda no ano de 2012.
Em ambas as oportunidades mencionadas, restou firmado o entendimento no sentido de, uma vez demonstrada a boa-fé do adquirente da mercadoria – comprovando-se documentalmente a materialidade da operação – os créditos devidamente destacados em nota fiscal e registrados na entrada deveriam ser mantidos na escrituração fiscal do contribuinte, afastando-se qualquer pretensão à responsabilização objetiva deste em face de possível ilicitude incorrida pelo fornecedor. Tal discussão foi ampla e cuidadosamente tratada na primeira fase deste Projeto Observatório[1] e o presente artigo não se presta para rediscuti-la.
Observamos, porém, que na decisão ora selecionada, inobstante o entendimento já firmado pelas cortes judicial e administrativa, e sob o fundamento da valoração das provas em garantia ao livre convencimento do julgador, a responsabilização objetiva do contribuinte adquirente voltou a ser aplicada ao arrepio do entendimento anterior.
De fato, a decisão proferida no AIIM 4049334-9 nos apresenta a especial peculiaridade de terem sido documentalmente comprovadas as operações mercantis questionadas. Não se debate ali a ausência de uma ou outra prova específica entendida por supostamente omitida e necessária para fins de comprovação da efetiva operação comercial. Ao contrário: tanto no acórdão recorrido como até mesmo a própria autoridade fiscal autuante atestam em suas manifestações inexistirem dúvidas sobre a materialidade das operações, chegando inclusive, este último, a confirmar a boa-fé do contribuinte autuado: “Reafirmo que a operação comercial foi efetivamente realizada e que nesse sentido a empresa não incorreu em má-fé (…)”
A única justificativa para a glosa dos créditos recaiu, então, para o fato de que a empresa fornecedora das mercadorias – que inquestionavelmente foram pagas e ingressaram no estabelecimento do contribuinte autuado – teve sua inscrição estadual declarada nula desde o momento de sua constituição, fato que motivou o entendimento de que não teria sido acostada aos autos a suposta comprovação da veracidade da compra e venda sob a justificativa de “se tratar de estabelecimento que simulou sua existência”.
De início, o respeitável Juiz Relator acolhia a nulidade suscitada pelo autuado manifestando-se no sentido de ser, “no mínimo prudente”, que todos os argumentos apresentados em defesa fossem devidamente enfrentados, uma vez reconhecida a boa-fé pela própria autoridade autuante. Assim registrou que “ao menos em princípio, parecia indicar a existência de comprovação da realização das operações”.
Contudo, o Voto-Vista, aposto em confronto à posição do Juiz Relator, se pautou em sustentar que as provas trazidas aos autos já haviam sido enfrentadas pela decisão a quo, decisão esta que, ao analisar “de forma objetiva” a boa-fé do contribuinte, entendeu não ser possível atestar a regularidade operacional da empresa fornecedora “de fachada”. Assim, e sob o manto da suposta “análise objetiva da boa-fé do contribuinte”, corroborou o segundo Juiz o entendimento da decisão recorrida, confirmando a responsabilidade do contribuinte nos moldes do art. 136 do CTN.
Neste ponto, o Voto-Vista destaca o trecho da decisão recorrida que neste sentido argumenta: “Pode ter havido a regularidade da transação comercial, presunção da boa-fé do adquirente, porém se as mercadorias foram adquiridas de empresa espúria e de fachada, como admitir que o imposto estava embutido no preço e lhe desse o direito de creditamento, creditar-se de um imposto que não existiu?”.
Por voto de desempate do Presidente, a nulidade foi então rejeitada.
Prosseguindo com a análise do mérito, entendeu por bem o Juiz Relator encerrar a discussão concluindo que, ainda que com ressalvas à decisão recorrida, por tratar o recurso especial de matéria que devolvia à Câmara Superior a suposta rediscussão de provas, este não poderia ser conhecido.
Por certo, e conforme brevemente demonstrado, a questão afeta à comprovação da boa-fé do contribuinte sequer era objeto dos autos, sendo certo que a decisão pelo não conhecimento do recurso claramente reabriu a possibilidade de se imputar novamente a responsabilidade objetiva enunciada pelo art. 136 do CTN ao adquirente, legitimando novamente discussão já pacificada. Destacamos na decisão por ora analisada, assim, o retrocesso e a contradição com o entendimento jurisprudencial firmado nos últimos aproximados 10 anos.
De fato, o entendimento do STF quando do já mencionado REsp 1.148.444/MG, expressamente afastou a possibilidade de aplicação da responsabilidade objetiva do adquirente – nos moldes do art. 136 do CTN – quando demonstrada a boa-fé do adquirente das mercadorias lastreadas por notas fiscais posteriormente declaradas inidôneas. Logo, uma vez comprovada a operação comercial ter sido efetivamente realizada há que se manter o direito ao crédito do imposto destacados em tais notas.
Nesse sentido, e conforme já mencionado, ao passo em que a sólida jurisprudência firmada sobre este tema se pauta em analisar exclusivamente a boa-fé do adquirente, nos parece frontalmente contraditória a decisão que mantém a pretensão de glosa dos créditos sob o fundamento de que o fornecedor encerraria uma “empresa espúria e de fachada”, sendo impossível “creditar-se de um posto que nunca existiu”. A nosso ver, tal entendimento se presta tão somente para devolver ao contribuinte que documentalmente comprovou ter realizado a operação comercial a responsabilidade ilimitada e irrestrita de ter contratado com empresa declarada inidônea.
Importante destacar que o Voto-Vista não se furta em fazer referência ao entendimento do STJ e do TIT. Contudo imbuído na intenção de convalidar seu posicionamento, esclarece que, inobstante não ser questionada a boa-fé do contribuinte, o requisito essencial para a confirmação dos créditos glosados não foi atendido na medida em que a “veracidade das operações” não poderia ser demonstrada face à “inexistência fáctica do estabelecimento fornecedor”.
Posto isso, e no contexto do exposto neste artigo, não estaria a Câmara Superior no presente processo reapreciando provas, prosseguisse com o julgamento do recurso especial levado à discussão. Isso porque a análise de provas no tema que por ora se coloca – possibilidade de creditamento de notas fiscais declaradas inidôneas – reside, conforme sólida orientação jurisprudencial, exclusivamente na análise da boa-fé do contribuinte adquirente, matéria superada nestes autos até mesmo pela autoridade fiscal autuante.
Assim, e ao deixar de conhecer o recurso especial do contribuinte, possivelmente a decisão proferida apenas trouxe novamente ao cenário administrativo paulista a possibilidade de se atribuir a responsabilidade objetiva e automática à todos os contribuintes, retrocedendo à aplicação, para estes casos, do art. 136 do CTN.
Autora:
Daniela Cristina Ismael Floriano
Coordenação:
Eurico Marcos Diniz de Santi
Eduardo Perez Salusse
Lina Santin
Dolina Sol Pedroso de Toledo
fonte: jota.com.br