Os restaurantes adquirentes de pescados e a cobrança indevida do ICMS diferido

Conduta da SEFAZ/SP viola expressamente o próprio princípio da legalidade tributária

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Em julho deste ano, o Fisco estadual paulista articulou a chamada “Operação Pescados”, por meio da qual notificou mais de mil restaurantes e varejistas adquirentes de pescados dentro do estado, exigindo-lhes o recolhimento do ICMS diferido nas respectivas aquisições, sob risco de autuação.

A cobrança tem como base o entendimento de que os restaurantes e varejistas paulistas, ao promoverem a venda de pescados, ficam responsáveis pelo pagamento do ICMS referente às operações anteriores, por ocorrer a “quebra do diferimento”. Trata-se do término da postergação do pagamento do imposto a terceiro, nos termos do artigo 3911 e 4302 do Regulamento do ICMS do estado de São Paulo (RICMS/SP).

O envio das notificações foi indiscriminado quanto ao regime de tributação ao qual o restaurante está submetido – tanto empresas aderentes ao Simples Nacional, quanto aquelas tributadas pelo lucro real ou presumido viram-se obrigadas a recolher o ICMS supostamente devido.

O objetivo deste artigo é questionar tal postura fazendária da perspectiva dos restaurantes optantes do Simples Nacional; regime disciplinado na Lei Complementar (LC) nº 123/2006.

Para tanto, cumpre, inicialmente, apresentar o cenário jurídico atual quanto às regras de diferimento no estado de São Paulo para, depois, avaliar a correção dos procedimentos então adotados pelo fisco.

Como é sabido, o diferimento é modalidade de substituição tributária por meio da qual se transfere o lançamento e pagamento do tributo à etapa posterior à ocorrência do fato gerador da obrigação tributária. No caso dos restaurantes, especialmente aqueles optantes do Simples Nacional, este ocorrerá, tão somente, na saída (venda) de pescados ao consumidor final, o que se evidencia tanto pela leitura do artigo 391 do RICMS/SP, quanto à luz da inteligência da jurisprudência paulista. Igualmente corroboram essa interpretação a sistemática própria do Simples Nacional e os princípios que regem o ordenamento jurídico constitucional tributário.

Todavia, o fisco estadual insiste e pretende suportar as cobranças efetuadas na redação do artigo 430, caput e incisoIII, Livro II, do RICMS/SP3. Segundo tal dispositivo, “a pessoa em cujo estabelecimento se realizar qualquer operação, prestação ou evento”, previsto como momento do lançamento do imposto diferido ou suspenso, deve efetivar o recolhimento do imposto devido nas operações anteriores na qualidade de responsável. Tratando-se de pessoa jurídica aderente do regime do Simples Nacional, tal recolhimento se dará mediante guia de recolhimento especial.

A mera leitura do dispositivo pode ensejar a conclusão precipitada de que a aquisição do pescado pelo restaurante encerraria o diferimento, transferindo a responsabilidade pelo recolhimento do imposto nas operações anteriores ao restaurante. Porém, ao analisarmos o artigo 4324 do mesmo RICMS/SP, percebemos que, em havendo regra específica de diferimento prevista na legislação como determinante do lançamento do imposto, prevalecerá esta regra.

Nesse caso, cumpre avaliar o conteúdo do artigo 391 do RICMS/SP, que trata dos casos de “quebra do diferimento” (i.e., ICMS devido a partir de então) nas operações internas com pescados. Dentre as hipóteses previstas estão “I – sua saída para outro Estado”; “II – sua saída para o exterior”; “III – sua saída do estabelecimento varejista”; e “IV – a saída dos produtos resultantes de sua industrialização”.

Como fica claro, o legislador não incluiu, propositalmente, de nossa perspectiva, as operações de aquisição (entrada) efetuadas pelos restaurantes no escopo do dispositivo – ainda que estes venham a ser considerados estabelecimentos varejistas -, o que fortalece a posição aqui pretendida.

Ademais, o tema do diferimento do ICMS nas operações dos restaurantes já fora, inclusive, objeto de análise pelo Tribunal de Justiça do estado de São Paulo5.

Naquela oportunidade, restou decidido que a quebra do diferimento” ocorrerá apenas no momento da venda (saída) pelos restaurantes ao consumidor final, o que corrobora a compreensão de que a parcela do ICMS diferido na cadeia dos pescados já estará embutida no DAS, Documento de Arrecadação do Simples Nacional, na metodização do Simples Nacional.

Nesse sentido, como é sabido, a própria sistemática de apuração dos tributos devidos sob o regime do Simples Nacional pressupõe o recolhimento unificado de diversas incidências tributárias, inclusive o ICMS.

Isso se dá pela utilização da receita bruta6 do mês apurado como base de cálculo, aplicando-se-lhe a alíquota efetiva com fulcro na receita bruta acumulada nos 12 (doze) meses anteriores ao do período de apuração, nos termos da redação do artigo 3º, parágrafo 1º da LC nº 123/20067. Dessa forma, uma vez identificado o montante devido a título de ICMS, o efetivo recolhimento se dará de forma una, mediante documento único de arrecadação, o DAS, estando ali compreendida toda a carga tributária incidente na operação – entradas e saídas – dos restaurantes, mês a mês.

Note-se, ainda, que a constitucionalidade da exigência do ICMS na sistemática da substituição tributária de contribuintes que estão no Simples Nacional aguarda definição pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 6.030, em especial no que concerne ao artigo 13, inciso VII, parágrafo 1º e inciso XIII, alínea “a”, da LC nº 123/2006. Com efeito, o que se defende é que a lei prejudica a desburocratização tributária e, portanto, o recolhimento efetuado pelo DAS deveria considerar inclusive o ICMS devido nas operações sujeitas ao regime de substituição tributária, até porque a tributação pelo Simples terá como base o faturamento do negócio.

Fica claro, portanto, que não há fundamentação legal válida apta a ensejar a cobrança do ICMS diferido na aquisição de pescados pelos restaurantes optantes do Simples Nacional.

Dessa feita, é possível alegar que a conduta da SEFAZ/SP viola expressamente o próprio princípio da legalidade tributária, de qual decorre a tipicidade fechada, e segundo o qual os tipos tributários devem ser minuciosos, não deixando espaços para discricionariedade e nem para a analogia, salvo “in bonan parter”.

Assim, caso a norma não descreva com detalhes o tributo, este não poderá ser cobrado, por insuficiência do tipo, sob o risco de violação à legalidade tributária. É precisamente este o paradoxo em que se insere a cobrança do ICMS diferido nas aquisições de pescados dos restaurantes paulistas.

À luz do exposto, em linhas sumarizadas, a cobrança do ICMS diferido é indevida, ao menos no que concerne aos restaurantes optantes do Simples Nacional, até porque, como visto, o valor atinente aos pescados já está embutido no recolhimento efetuado pelo DAS.

Ao se pretender tributar também pelas entradas, acarretar-se-á, a toda evidência, dupla tributação. Isso porque, a própria metodologia de apuração dos restaurantes, como visto, não lhes permitirá reduzir seu faturamento (receita bruta), para fins de incidência do ICMS na saída ao consumidor final, além de configurar violação ao princípio da legalidade.

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1 Artigo 391- O lançamento do imposto incidente nas operações internas com pescados, exceto os crustáceos e os moluscos, em estado natural, resfriados, congelados, salgados, secos, eviscerados, filetados, postejados ou defumados para conservação, desde que não enlatados ou cozidos, excluídas as saídas internas realizadas por estabelecimento que tenha como CNAE principal os códigos 1020-1/01 ou 1020-1/02, fica diferido para o momento em que ocorrer: I – sua saída para outro Estado;

II – sua saída para o exterior;

III – sua saída do estabelecimento varejista;

IV – a saída dos produtos resultantes de sua industrialização.

2 Artigo 430– A pessoa em cujo estabelecimento se realizar qualquer operação, prestação ou evento, previsto neste Livro como momento do lançamento do imposto diferido ou suspenso, efetuará, na qualidade de responsável, o pagamento correspondente às saídas ou prestações anteriores.

3 Art. 430 – III – tratando-se de contribuinte sujeito às normas do Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – “Simples Nacional”, de uma só vez, mediante guia de recolhimento especial, até o último dia do segundo mês subsequente ao das operações.

4 Artigo 432- Se houver regra específica de suspensão, de diferimento ou de substituição tributária em relação a operação, prestação ou evento, prevista na legislação como determinante do lançamento do imposto, prevalecerá aquela regra.

5 (TJ/SP – 1022319-58.2015.8.26.0053- Rajk Restaurantes Ltda), (TJ/SP – 1022321-28.2015.8.26.0053 -Delphinus Restaurantes Ltda. e Ráscal Restaurantes Ltda.); (TJ/SP – 1035367-84.2015.8.26.0053 – Bital Restaurantes Ltda),

6 Entenda-se receita bruta, à Inteligência do art. 3º, §1º da Lei Complementar nº 123/2006, o produto da venda de bens e serviços nas operações de conta própria, o preço dos serviços prestados e o resultado nas operações em conta alheia, não incluídas as vendas canceladas e os descontos incondicionais concedidos.

7 Art. 3º Para os efeitos desta Lei Complementar, consideram-se microempresas ou empresas de pequeno porte, a sociedade empresária, a sociedade simples, a empresa individual de responsabilidade limitada e o empresário a que se refere o art. 966 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), devidamente registrados no Registro de Empresas Mercantis ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, conforme o caso, desde que: § 1º Considera-se receita bruta, para fins do disposto no caput deste artigo, o produto da venda de bens e serviços nas operações de conta própria, o preço dos serviços prestados e o resultado nas operações em conta alheia, não incluídas as vendas canceladas e os descontos incondicionais concedidos.

BEATRIZ WIXAK – Advogada tributarista no Machado Meyer Advogados. Formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV – SP).

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